À Descoberta da Noite




Dezanove horas. O sol rumava lentamente em direcção à linha do horizonte, incendiando o azul dos céus com mil e uma tonalidades de cor e deixando à despedida a inquebrável promessa de que voltaria mais tarde para render a lua. Valentim, o "príncipe" destes contos, observava com indiferença todo este espectáculo enquanto aguardava por Leonel e Tiago, os seus companheiros improvisados nesta viagem pela recém-chegada noite.

Chegados à hora marcada, trocaram calorosos cumprimentos e dirigiram-se a uma taberna de aspecto duvidoso para um trago de vinho e uma refeição quente, de forma a que energias não faltassem para enfrentarem as muitas surpresas e perigos que de mãos dadas andam com as sombras que o luar dá à luz. Fortalecidos pela opulenta refeição e entorpecidos pelas diversas homenagens que haviam feito a Baco, trocavam argumentos fervorosos, numa conversa banal, quando Valentim reparou num homem de longas barbas brancas, aparentando ter mil anos de idade, cujo olhar repousava num lugar inalcançavel. Curioso acerca do que se estaria escondido para lá do infinito, Valentim tentou ver o reflexo nos olhos do ancião quando estes, retornando instantaneamente ao presente, observaram o jovem e leram a sua alma. Os olhos do velho homem tornaram-se ainda mais enigmáticos até que, após uma longa fracção de um momento, este disse num sussurro que só os dois podiam escutar:

- Em longas e tempestuosas viagens irás embarcar para encontrar o que procuras e que tão perto de ti sempre esteve.

Confuso, Valentim alternou o olhar para os seus dois companheiros na expectativa que algum deles tivesse escutado e decifrado tão estanha profecia, mas estes encontravam-se profundamente concentrados nos fundos das suas canecas de vinho, com a insólita expressão de quem receava que, a qualquer momento, o líquido precioso se evaporasse, como que por magia, no ambiente pesado da sala. Voltou a olhar em direcção do homem mas este já lá não se encontravam,  fazendo com que questionasse a sua sanidade mental. De forma pouco convincente deitou as culpas ao vinho pela estranha aparição, pensando: - Este vinho é demasiado forte. O silêncio de Valentim despertou a atenção dos seus companheiros tendo estes, consequentemente, chegado à conclusão que o momento de terminar a refeição tinha chegado.

- Vamos beber um copo a um sitio bem animado que eu conheço? - perguntou Leonel.

Todos acenaram afirmativamente e, numa velha carripana, se dirigiram para oeste. Chegados ao destino, sentiram uma brisa agradável que trazia consigo o odor a maresia e, ao longe, viram um festival de luzes várias, recortadas pelo movimento ofegante de um alegre bailado de silhuetas que dançavam ao ritmo de uma batida quente e sensual, inconfundivelmente latina. À medida que se aproximavam surgiam, no lugar das silhuetas, corpos soltos, despidos de roupas pesadas e opressivas, que num frenesim ondulavam, irresistivelmente atraídos mas sem se fundirem. Neste ambiente festivo andaram, por um bocado, até tomarem contacto com um grupo de três amigas que, porventura, também andariam à procura de algo no escuro da noite.
As raparigas partilhavam entre si várias qualidades: roliças, vaidosas, amantes de novelas fúteis e de catálogos de compras, o que despertou um misto de sentimentos em Valentim; por um lado sentia o seu lado animal a empurra-lo para a luxúria mas, antagonicamente, sentia-se profundamente irritado e desejoso de que estas não voltassem a articular a língua para proferir palavras. Entre jogos fúteis e conversas ocas se mantiveram, durante algum tempo, até que, numa das idas em grupo das raparigas à casa de banho, os rapazes começaram a conversar entre si:

- São jeitosas! - disse Tiago.
- Sim são, já estou a imagina-las mudas e amordaçadas! - ironizou Valentim.
- Creio que é perda de tempo continuarmos nisto, daqui nada de interessante vai brotar- concluiu Leonel, ao que Valentim respondeu:
- Leonel, conheces bem a noite, leva-nos ao seu lado mais negro e que a candeia nunca se apague para que não fiquemos perdidos na escuridão.

Assim foi dito, assim foi feito... Voltaram à velha carripana, fugindo das raparigas, encobertos pela calada da noite.  Desta vez rumaram para norte, percorrendo estradas sinuosas e desertas até que, após uma viagem em que só se ouviu os sons do motor e do rádio, chegaram a um labiríntico complexo de armazéns aonde andaram perdidos até se depararem com um estranho personagem que acenava cambaleante. De boné sujo, bigode gorduroso e olhar arregalado, o homem anunciou que haviam chegado ao paraíso e que não mais teriam que viajar pela noite, enquanto apontava, com o dedo indicador, para uma pequena porta sem letreiro nem iluminação. Sentindo um misto de receio e curiosidade dirigiram-se, pé ante pé, vagarosamente, para a direcção apontada. Leonel bateu à porta e esta manteve-se fechada, por um pequeno momento, até que, de forma abrupta, se abriu e apareceram dois rostos duros e frios que olharam desconfiadamente para os três amigos, sem proferirem uma palavra; apenas um gesto seco para entrarem. Valentim assistiu a esta cena, perguntando-se se a curiosidade não o teria feito abrir a caixa das coisas más, que não mais o largariam, mas ainda assim entrou para de deparar com um salão repleto de jovens mulheres e de homens, de todas as idades, com aura de felinos que, a qualquer momento, podem colocar as garras de fora para atacar.

(CONTINUA)

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