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Há muito que nada escrevo neste espaço e não será hoje que deixarei aqui outro pequeno conto. No entanto deixo uma ligação para outras estórias, a diferença fundamental é que são contadas através de imagens:


PM Accounting.

Um Começo de Ano Embaraçoso

Apetecia-me ficar na cama, mas como dessa forma iria correr o risco de ter pesadelos e, consequentemente, um péssimo começo de ano, resolvi passar o réveillon em casa de uma amiga. Ela havia preparado uma festa privada que foi, como seria de esperar, recheada de comida, bebida, pessoas e a inevitável música (tum tum) aos berros, que impossibilitava desfrutar seriamente uma boa conversa.
Fui passando o meu tempo, durante não muito tempo, quando, no meio da batida (tungue tungue tungue), uma mulher cujo nome desconheço, mas com formas que não esquecerei, olhou para mim sorrindo e me chamou para dançar. Era alta, sensual, de cabelos negros, longos e ondulados, com um corpo que todas as raparigas que lá se encontravam desejaram silenciosamente encarnar (enquanto roíam furiosamente as uvas passas). Em bom vernáculo masculino, era aquilo que denominamos por  mulherão. Fiz-me caro, recusei amavelmente e olhei para o lado, continuando a conversa (aos berros) com uma rapariga que me fazia companhia.
Decorreu mais algum tempo até que, como que por acaso, me sentei ao lado daquela bela mulher e disse, olhando-a bem nos olhos:

— Quando passar uma música mais romântica terei todo o prazer em dançar contigo... Aconchegado...

O meu plano era simples; com esta tirada completamente inesperada pretendia atordoar a presa , enquanto a hipnotizava com um olhar bem disposto e penetrante. Já outrora havia utilizado tal artimanha, com sucesso, sendo que aguardei a reacção dela confiante. Ela olhou para mim, por uns momentos, inclinou-se perigosamente e, com um sorriso triunfante, exclamou:

— Gosto de coisas muito, mas muito mais agitadas...

Esta resposta não constava no meu plano bê. Não sei que cara terei feito, só sei que fiquei atordoado e que demorei um momento demasiado longo a reagir. Entretanto, ela levantou-se, lentamente, fazendo de conta que me ignorava, mas observando-me pelo canto do olho. Com movimentos felinos dirigiu-se para o centro da sala aonde começou a dançar, sensualmente, com uma amiga, ondulando o corpo de forma hipnotizante, enquanto o seu vestido de noite esvoaçava contidamente.
A festa prosseguiu e pouco mais teve digno de nota, ficando, no entanto, a  embaraçosa recordação de como um feitiço se pode virar contra o feiticeiro.

A Menina do Comboio




A tarde principiava e as folhas tombavam no solo, conjuntamente com a chuva, enquanto eram fustigadas pelo vento que trazia consigo murmúrios de um Inverno já não muito distante. Entretanto, eu caminhava, rumo a um destino incerto, orientado pelo caminho de ferro e cada vez mais próximo de uma estação de comboios, fervilhante de gente que lá se encontrava de passagem.

Ao chegar à gare, procurei um abrigo junto à linha, de forma a descansar e recuperar algum do calor que o tempo me havia descaradamente roubado. Encostei-me a um canto e reparei que também um casal de jovens, com os rostos enrugados por expressões de desânimo, se tentava proteger dos elementos. Senti alguma simpatia por eles e desviei o olhar quando reparei que se sentiam incomodados por tão grande curiosidade de minha parte, talvez envergonhados por eu ter observado, para além da capa dos seus egos, almas vergadas pelo sofrimento e pela desesperança. Foi nesse momento que chegou um comboio que acolheria o casal, enquanto as carruagens se esvaziariam de corpos sem rosto – Desejei, silenciosamente, boa sorte aos jovens namorados, para que o comboio os levasse para algum lugar melhor aonde pudessem ser felizes.

No meio da confusão e do burburinho, reparei numa mulher que havia saído de uma das carruagens e que me observava com atenção, reconhecendo-me apesar de nunca nos termos cruzado antes. Os seus olhos eram cor de mel, os cabelos negros e a expressão profunda. Dirigi-me a ela, algo na dúvida, e apresentei-me com breves palavras, enquanto através do olhar travávamos um intenso e silencioso diálogo, sem discordâncias, mas repleto de argumentos. Ainda em silêncio, concordámos em sair dali e dirigimo-nos para fora da estação, rumo a parte incerta, mas confortados pela recém-descoberta companhia um do outro.

A tarde foi como um piquenique, cheio de calor e boa disposição, mas sem as formigas, o farnel e o sol. Percorremos caminhos pelos quais nos perdemos, demos as mãos carinhosamente e assim andámos, até descobrirmos um sítio quente e acolhedor aonde nos sentámos, frente a frente. Apesar de não mais sermos crianças, portámo-nos como adolescentes, nervosos e irrequietos, com a ansiedade de quem espera pelo primeiro beijo. Assim foi até que, num impulso, a beijei, sendo que ela respondeu, ainda mais intensamente, mas ficando envergonhada por se ter permitido a um breve momento de loucura que poderia ter ficado completamente fora de controle! O desejo ardente, forçosamente contido, era alternado por sentimentos de carinho; uma combinação explosiva, mas ao mesmo tempo serenante, que desfrutámos com prazer.

Partilhámos, sem contenção, os nossos seres, enquanto a hora da partida se aproximava. Ainda de mãos dadas, caminhámos sem pressa, saboreando aqueles últimos momentos. A despedida não teve um adeus, apenas uma troca de olhares e um beijo profundo que ela me roubou antes de partir. O comboio arrancou, para mais uma viagem, e levou consigo a menina que não mais voltei a ver. Uma nova etapa das viagens que são as nossas vidas estava a começar e nós, num acaso feliz, encontramo-nos, conhecemo-nos e despedimo-nos naquela estação.

PS: I want to thank Dragan Sekaric Shex for giving me permission to use his beautiful works,  which can be seen at http://www.shexart.com/.

A Mentira

Tudo começou com uma doce ilusão, uma promessa de algo bom, demasiado verdadeiro para ser verdade mas,  como embarcamos numa quimera sem retorno em busca da felicidade, recusamos-nos a duvidar e abraçamos com ternura a sorte. A ilusão é pura e doce e, ao ser provada, deixa aquele agradável travo na boca que nos abre o apetite pela vida.

No entanto, a lua esconde-se da noite e as marés mudam... Ao observarmos o que nos parecia ser de um branco puro, deparamo-nos com as primeiras nódoas. Fechamos os olhos, beliscamo-nos e fazemos um breve pedido a alguém incerto para que aquilo não esteja a acontecer. Abrimos novamente os olhos e reparamos que as manchas se alastraram inexplicavelmente. Furiosamente tentamos limpá-las, rogando pragas por não terem acedido ao nosso pedido, revoltados por aquela imagem de alvura não  ser real mas sim o produto de uma mente deturpada.

Naqueles dias em que o Sol tem vergonha de aparecer, a imagem torna-se negra e perde-se na penumbra. Os que nela acreditavam abrem a boca de estupefacção, revoltados por terem sido tão torpemente ludibriados. O que há de positivo em tudo isto? Aqueles que são enganados prosseguirão as suas vidas mais sábios, conscientes do quão bem engendrada uma farsa pode ser.