A Menina do Comboio




A tarde principiava e as folhas tombavam no solo, conjuntamente com a chuva, enquanto eram fustigadas pelo vento que trazia consigo murmúrios de um Inverno já não muito distante. Entretanto, eu caminhava, rumo a um destino incerto, orientado pelo caminho de ferro e cada vez mais próximo de uma estação de comboios, fervilhante de gente que lá se encontrava de passagem.

Ao chegar à gare, procurei um abrigo junto à linha, de forma a descansar e recuperar algum do calor que o tempo me havia descaradamente roubado. Encostei-me a um canto e reparei que também um casal de jovens, com os rostos enrugados por expressões de desânimo, se tentava proteger dos elementos. Senti alguma simpatia por eles e desviei o olhar quando reparei que se sentiam incomodados por tão grande curiosidade de minha parte, talvez envergonhados por eu ter observado, para além da capa dos seus egos, almas vergadas pelo sofrimento e pela desesperança. Foi nesse momento que chegou um comboio que acolheria o casal, enquanto as carruagens se esvaziariam de corpos sem rosto – Desejei, silenciosamente, boa sorte aos jovens namorados, para que o comboio os levasse para algum lugar melhor aonde pudessem ser felizes.

No meio da confusão e do burburinho, reparei numa mulher que havia saído de uma das carruagens e que me observava com atenção, reconhecendo-me apesar de nunca nos termos cruzado antes. Os seus olhos eram cor de mel, os cabelos negros e a expressão profunda. Dirigi-me a ela, algo na dúvida, e apresentei-me com breves palavras, enquanto através do olhar travávamos um intenso e silencioso diálogo, sem discordâncias, mas repleto de argumentos. Ainda em silêncio, concordámos em sair dali e dirigimo-nos para fora da estação, rumo a parte incerta, mas confortados pela recém-descoberta companhia um do outro.

A tarde foi como um piquenique, cheio de calor e boa disposição, mas sem as formigas, o farnel e o sol. Percorremos caminhos pelos quais nos perdemos, demos as mãos carinhosamente e assim andámos, até descobrirmos um sítio quente e acolhedor aonde nos sentámos, frente a frente. Apesar de não mais sermos crianças, portámo-nos como adolescentes, nervosos e irrequietos, com a ansiedade de quem espera pelo primeiro beijo. Assim foi até que, num impulso, a beijei, sendo que ela respondeu, ainda mais intensamente, mas ficando envergonhada por se ter permitido a um breve momento de loucura que poderia ter ficado completamente fora de controle! O desejo ardente, forçosamente contido, era alternado por sentimentos de carinho; uma combinação explosiva, mas ao mesmo tempo serenante, que desfrutámos com prazer.

Partilhámos, sem contenção, os nossos seres, enquanto a hora da partida se aproximava. Ainda de mãos dadas, caminhámos sem pressa, saboreando aqueles últimos momentos. A despedida não teve um adeus, apenas uma troca de olhares e um beijo profundo que ela me roubou antes de partir. O comboio arrancou, para mais uma viagem, e levou consigo a menina que não mais voltei a ver. Uma nova etapa das viagens que são as nossas vidas estava a começar e nós, num acaso feliz, encontramo-nos, conhecemo-nos e despedimo-nos naquela estação.

PS: I want to thank Dragan Sekaric Shex for giving me permission to use his beautiful works,  which can be seen at http://www.shexart.com/.

A Mentira

Tudo começou com uma doce ilusão, uma promessa de algo bom, demasiado verdadeiro para ser verdade mas,  como embarcamos numa quimera sem retorno em busca da felicidade, recusamos-nos a duvidar e abraçamos com ternura a sorte. A ilusão é pura e doce e, ao ser provada, deixa aquele agradável travo na boca que nos abre o apetite pela vida.

No entanto, a lua esconde-se da noite e as marés mudam... Ao observarmos o que nos parecia ser de um branco puro, deparamo-nos com as primeiras nódoas. Fechamos os olhos, beliscamo-nos e fazemos um breve pedido a alguém incerto para que aquilo não esteja a acontecer. Abrimos novamente os olhos e reparamos que as manchas se alastraram inexplicavelmente. Furiosamente tentamos limpá-las, rogando pragas por não terem acedido ao nosso pedido, revoltados por aquela imagem de alvura não  ser real mas sim o produto de uma mente deturpada.

Naqueles dias em que o Sol tem vergonha de aparecer, a imagem torna-se negra e perde-se na penumbra. Os que nela acreditavam abrem a boca de estupefacção, revoltados por terem sido tão torpemente ludibriados. O que há de positivo em tudo isto? Aqueles que são enganados prosseguirão as suas vidas mais sábios, conscientes do quão bem engendrada uma farsa pode ser.

À Descoberta da Noite




Dezanove horas. O sol rumava lentamente em direcção à linha do horizonte, incendiando o azul dos céus com mil e uma tonalidades de cor e deixando à despedida a inquebrável promessa de que voltaria mais tarde para render a lua. Valentim, o "príncipe" destes contos, observava com indiferença todo este espectáculo enquanto aguardava por Leonel e Tiago, os seus companheiros improvisados nesta viagem pela recém-chegada noite.

Chegados à hora marcada, trocaram calorosos cumprimentos e dirigiram-se a uma taberna de aspecto duvidoso para um trago de vinho e uma refeição quente, de forma a que energias não faltassem para enfrentarem as muitas surpresas e perigos que de mãos dadas andam com as sombras que o luar dá à luz. Fortalecidos pela opulenta refeição e entorpecidos pelas diversas homenagens que haviam feito a Baco, trocavam argumentos fervorosos, numa conversa banal, quando Valentim reparou num homem de longas barbas brancas, aparentando ter mil anos de idade, cujo olhar repousava num lugar inalcançavel. Curioso acerca do que se estaria escondido para lá do infinito, Valentim tentou ver o reflexo nos olhos do ancião quando estes, retornando instantaneamente ao presente, observaram o jovem e leram a sua alma. Os olhos do velho homem tornaram-se ainda mais enigmáticos até que, após uma longa fracção de um momento, este disse num sussurro que só os dois podiam escutar:

- Em longas e tempestuosas viagens irás embarcar para encontrar o que procuras e que tão perto de ti sempre esteve.

Confuso, Valentim alternou o olhar para os seus dois companheiros na expectativa que algum deles tivesse escutado e decifrado tão estanha profecia, mas estes encontravam-se profundamente concentrados nos fundos das suas canecas de vinho, com a insólita expressão de quem receava que, a qualquer momento, o líquido precioso se evaporasse, como que por magia, no ambiente pesado da sala. Voltou a olhar em direcção do homem mas este já lá não se encontravam,  fazendo com que questionasse a sua sanidade mental. De forma pouco convincente deitou as culpas ao vinho pela estranha aparição, pensando: - Este vinho é demasiado forte. O silêncio de Valentim despertou a atenção dos seus companheiros tendo estes, consequentemente, chegado à conclusão que o momento de terminar a refeição tinha chegado.

- Vamos beber um copo a um sitio bem animado que eu conheço? - perguntou Leonel.

Todos acenaram afirmativamente e, numa velha carripana, se dirigiram para oeste. Chegados ao destino, sentiram uma brisa agradável que trazia consigo o odor a maresia e, ao longe, viram um festival de luzes várias, recortadas pelo movimento ofegante de um alegre bailado de silhuetas que dançavam ao ritmo de uma batida quente e sensual, inconfundivelmente latina. À medida que se aproximavam surgiam, no lugar das silhuetas, corpos soltos, despidos de roupas pesadas e opressivas, que num frenesim ondulavam, irresistivelmente atraídos mas sem se fundirem. Neste ambiente festivo andaram, por um bocado, até tomarem contacto com um grupo de três amigas que, porventura, também andariam à procura de algo no escuro da noite.
As raparigas partilhavam entre si várias qualidades: roliças, vaidosas, amantes de novelas fúteis e de catálogos de compras, o que despertou um misto de sentimentos em Valentim; por um lado sentia o seu lado animal a empurra-lo para a luxúria mas, antagonicamente, sentia-se profundamente irritado e desejoso de que estas não voltassem a articular a língua para proferir palavras. Entre jogos fúteis e conversas ocas se mantiveram, durante algum tempo, até que, numa das idas em grupo das raparigas à casa de banho, os rapazes começaram a conversar entre si:

- São jeitosas! - disse Tiago.
- Sim são, já estou a imagina-las mudas e amordaçadas! - ironizou Valentim.
- Creio que é perda de tempo continuarmos nisto, daqui nada de interessante vai brotar- concluiu Leonel, ao que Valentim respondeu:
- Leonel, conheces bem a noite, leva-nos ao seu lado mais negro e que a candeia nunca se apague para que não fiquemos perdidos na escuridão.

Assim foi dito, assim foi feito... Voltaram à velha carripana, fugindo das raparigas, encobertos pela calada da noite.  Desta vez rumaram para norte, percorrendo estradas sinuosas e desertas até que, após uma viagem em que só se ouviu os sons do motor e do rádio, chegaram a um labiríntico complexo de armazéns aonde andaram perdidos até se depararem com um estranho personagem que acenava cambaleante. De boné sujo, bigode gorduroso e olhar arregalado, o homem anunciou que haviam chegado ao paraíso e que não mais teriam que viajar pela noite, enquanto apontava, com o dedo indicador, para uma pequena porta sem letreiro nem iluminação. Sentindo um misto de receio e curiosidade dirigiram-se, pé ante pé, vagarosamente, para a direcção apontada. Leonel bateu à porta e esta manteve-se fechada, por um pequeno momento, até que, de forma abrupta, se abriu e apareceram dois rostos duros e frios que olharam desconfiadamente para os três amigos, sem proferirem uma palavra; apenas um gesto seco para entrarem. Valentim assistiu a esta cena, perguntando-se se a curiosidade não o teria feito abrir a caixa das coisas más, que não mais o largariam, mas ainda assim entrou para de deparar com um salão repleto de jovens mulheres e de homens, de todas as idades, com aura de felinos que, a qualquer momento, podem colocar as garras de fora para atacar.

(CONTINUA)

O Guerreiro Estóico



Outrora, numa época em que Chronos foi apelidado de "Idade das Trevas", a besta desumana praticava a inclemência e cultivava a ignorância fazendo com que o seu próximo, o ser humano, lutasse num jogo de azar sem regras, completamente entregue à sua sorte, abandonado e ignorado por um omnipresente e omnisapiente Pai.

O guerreiro valoroso lutava em nome do divino e da riqueza alheia, sendo que a sua única aspiração ao transcendente consistia em viver e morrer com honra , rastejando erecto até o corpo suspirar um último fôlego e a alma desabafar um murmúrio de despedida dirigido a queridos ausentes. Neste mundo cão, seriam os ratos que transportariam as pulgas que, apesar da sua pequenez, viriam a cobrir os imaculados e impuros com um negro e colossal sudário.

Nestes tempos viveram homens que morreram em vãs batalhas, entregues ao frio, à chuva, à fome, à doença e à gélida lâmina da espada. Aos que tinham frio, restava-lhes procurar um abrigo, uma simples vestimenta e tentar usufruir de um pouco do saque de Prometeu. Aos que enfraquecidos estavam pela fome, forças teriam que descobrir para procurar um naco de pão e para afogar a sede e a mágoa num copo de vinho. Aqueles que adoeciam, exangues acabariam, entregues às sanguessugas que, pela providência, encarregues foram de excomungar o mal do sangue dos enfermos, não tivessem todos as criaturas deste mundo um desígnio divino. Aos outros, restava viver ou morrer pela espada, qual batuta que orquestra uma ode heróica em honra daqueles que matam os seus irmãos...
Foram homens como estes que lutaram contra a adversidade e que, após longas batalhas por uma vida que perderam, não deixaram perecer a Humanidade no seu pior momento.

Hoje, na sociedade moderna e "civilizada", a poucos, ainda que demasiados, falta o pão para comer ou o calor para aquecer. A doença que outrora atacava impunemente, hoje é combatida, tal como o guerreiro da espada combateu o inimigo que mais não era que um reflexo de si mesmo. A conclusão seria de que a dura batalha já deveria ter esmorecido mas o Homem continua pateticamente a abater-se, enquanto estoicamente se vai reerguendo.